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Artigo publicado na Revista Tapo (Rússia)
Introdução
O baralho petit Lenormand é um oráculo com uma grande potência narrativa, interpretativa e, ao contrário do que se costuma pensar, possibilita a realização de leituras profundas e surpreendentes. Num mundo dominado pela lógica do tarot, os oráculos pertencentes à cartomancia popular acabam ocupando um lugar de menos destaque e ficam muitas vezes relegados a categorias de pouco prestígio. Entretanto, o Lenormand, uma sibila fascinante, tem todos os ingredientes necessários para ser reconhecido como merece.
Neste breve artigo falaremos um sobre a estrutura narrativa do baralho Petit Lenormand, sua expansão dentro do mundo oracular contemporâneo e sobre cartomancia brasileira.
Dos livros de emblemas ao “Jogo da Esperança”
Para entender as origens iconográficas das cartas do petit Lenormand precisamos retroceder ao século XVI, mais especificamente ao ano de 1531 quando da publicação do livro de poemas ilustrados Emblematum liber de Andrea Alciato (1492-1550). A mencionada obra inaugura a criação de um novo gênero literário, que teve muito destaque entre os séculos XVI e XVIII, que possuía a premissa de criar uma linguagem universal através de imagens, à semelhança dos hieróglifos egípcios, utilizando este recurso para a transmissão de conteúdos pedagógicos e moralizantes.
Era possível então, ao entrar em contato com uma imagem específica, que a pessoa pudesse mobilizar uma série de valores que faziam parte do repertório cultural e social de sua época e para que isso acontecesse não era estritamente necessário que se soubesse ler. Os elementos presentes ali eram tão comuns aos cidadãos daquele tempo, que somente o contato com o símbolo já mobilizava os valores associados a ele e era possível construir uma narrativa coerente a partir desta faísca inicial.
O “Jogo da esperança” criado em Nuremberg (Alemanha) em 1799 por Johann Kaspar Hechtel (1771-1799) é o protótipo do que hoje conhecemos como baralho petit Lenormand. Ele também foi desenvolvido com uma finalidade pedagógica, além de lúdica, de entretenimento, como um jogo de mesa em formato de cartas no qual encontramos uma similitude de propósito e um diálogo importante em termos iconográficos com o universo dos emblemas.
A dimensão narrativa já estava presente no espaço lúdico do uso do jogo uma vez que ao lançar os dados e caminhar sobre as cartas, o jogador ia formando uma história com seus percalços e vitórias a partir do significado de cada imagem.
A pesquisadora Tali Goodwin, em parceria com Marcus Katz, foi a responsável por trazer à luz determinadas informações sobre as regras do jogo, trazendo à tona as seguintes passagens traduzidas por Alexsander Lepletier para o site clube do tarô:
“As instruções trazem regras de jogo e formas simples de prever o futuro contanto histórias (...) Também é possível jogar um divertido jogo oracular com essas cartas embaralhando-se as 36 e deixando a pessoa para quem é destinado o oráculo corta-las e depois dispô-las em 5 linhas com 4 linhas de 8 cartas e a quinta com as 4 restantes. Se a pessoa que consulta é uma mulher, lâmina 29 começa-se compondo um alegre conto a partir das cartas que a rodeiam. Se para um homem, o conto começa da lâmina 28 e, mais uma vez, usa-se as cartas que a rodeiam. Isso trará muita diversão para qualquer boa companhia.”
Essa descrição é a semente do que hoje se conhece por gran tableau, gran tablero ou mesa real, tirada muito comum no uso deste oráculo, que é inspirada nas instruções fornecidas acima e que constitui, na perspectiva que trazemos no presente artigo, a expressão máxima do potencial narrativo deste sistema. Seja então pela construção discursiva a partir da interpretação dos emblemas contidos nas cartas, a capacidade de contar uma história através de imagens se vê potencializada pela proposta de organização do jogo a partir da figura central das cartas testemunha- homem: carta 28 e mulher: carta 29.
Jogo da esperança Reprodução do acervo do museu britânico
A chegada à França e sua publicação como cartas de oracular
Após seu primeiro uso com fins pedagógicos e lúdicos, as cartas chegam à França e é neste momento em que se transformam definitivamente em um oráculo. É em 1840 que a casa Grimaud publica um oráculo com 36 cartas, baseado no “Jogo da esperança” e o nomeia de “Petit Lenormand”, fazendo referência à famosa cartomante da corte de Napoleão Madame Marie-Anne Le Normand (1772-1843). Acompanhando a estratégia de marketing que envolvia o nome da célebre cartomante, os primeiros baralhos traziam em seu interior um livreto com as explicações dos significados das cartas e dos métodos de tiragem de autoria de Philippe Lenormand, um possível sobrinho de Marie-Anne.
Ainda que não se saiba exatamente quem foi o verdadeiro redator daquelas informações, o interessante é que os significados propostos muito se assemelham aos apresentados na dinâmica do jogo inicial e também a proposta de tirada denominada gran tableau na qual se dispõe todas as 36 cartas do baralho e se constrói uma narrativa a partir da interpretação e da relação que as cartas estabelecem entre si a partir da lógica da distância e da lateralidade, dando ênfase e destaque à carta que representa o consulente (carta 28) ou a consulente (carta 29) e as que as rodeiam, assim como vimos nas descrições das regras originais do jogo.
Nessa proposta temos a concretização de uma ideia do fio narrativo como técnica para a predição. As cartas dispostas como um grande tabuleiro, ocupando todo o espaço visual, vão traçando e escrevendo linhas, desemaranhando nós e formando uma narrativa do momento de vida do consulente, explorando os principais setores de sua vida, falando sobre diferentes e complementares eixos temporais.
Ainda que hoje em dia existam inúmeras formas e técnicas de movimentação dentro desta tirada, ainda que muitas outras possiblidades foram e são exploradas para além da proposta inicial tão similar ao Jogo da Esperança, a essência da perspectiva narrativa prevalece independentemente da abordagem. O processo de aprendizagem também pode ser pensado a partir desta mesma lógica, vejamos a seguir.
Sobre a estrutura do sistema e seu processo de aprendizagem
O processo de aprendizagem deste sistema começa pela memorização do emblema contido em cada carta. Assim como era feito com os livros ilustrados do século XVI, o estudante memoriza aquela imagem e esse processo o faz relacioná-la aos significados atribuídos a ela. É um processo bastante atrelado ao uso da memória e não à leitura e interpretação das imagens como se costuma fazer com as cartas do tarot. Essa primeira camada possibilita a construção do próximo passo que é a base do sistema da cartomancia de conversação e está ancorado no princípio das combinações, ou seja, duas ideias que unidas formam uma terceira, um ideograma:
A partir desta primeira célula interpretativa temos a formação de uma frase que responde à nossa pergunta, conselho ou orientação. As 36 cartas podem ser combinadas de infinitas maneiras e a ordem em que estão dispostas também interfere na mensagem, uma vez que a primeira carta tem mais relevância que as demais, trazendo o elemento mais importante.
O passo seguinte seria a utilização das conhecidas tiradas lineares que formariam uma frase mais longa e explicativa:
Carta 1: essência da questão
Carta 2: modificador 1
Carta 3: modificador 2
Já, para a formação de um parágrafo, dentro da perspectiva da lógica discursiva, teríamos, por exemplo a utilização das leituras em blocos de 9 cartas:
Bloco de 9 cartas ou 3x3
O auge seria alcançado e o fio narrativo estaria completo no uso da tirada que já nomeamos anteriormente, a mesa real. Nesse jogo, todas as 36 cartas são utilizadas construindo uma narrativa complexa e precisa do momento do consulente. Se dentro da cartomancia de conversação os significados das cartas são as palavras, as combinações simples de duas ou mais cartas são as frases, os blocos de 9 (ou 3x3) são os parágrafos, é na mesa real que temos a construção de uma narrativa completa, profunda e fascinante.
Mesa real organizada a partir do sistema 9x4
A leitura da mesa, além de remeter às origens do oráculo, traz em si o fio narrativo estruturado a partir da leitura das cartas dos consulentes e das cartas tema (cartas que simbolizam áreas específicas da vida). É um discurso coerente, coeso, e, embora a tirada em si ofereça toda essa profundidade, o intérprete (cartomante) deve possuir grandes habilidades discursivas para poder fazer a conexão entre as partes sem desconfigurar o todo e sem fugir do que as cartas transmitem. É um grande exercício de concentração e entrega.
Vimos então na prática como o processo de aprendizagem pode se estruturar a partir desta premissa da construção gradual do discurso.
Das origens à atualidade
Nos últimos anos, principalmente na última década, o sistema Lenormand se espalhou pelo mundo cativando uma série de adeptos. Essa expansão fomentou o aprofundamento dos estudos e pesquisas sobre as origens históricas do oráculo e fez surgir uma série de novas maneiras de se relacionar com as cartas. Além do que se conhece como Escola Europeia, e suas várias vertentes e estilos, podemos destacar o grande movimento nos EUA, no Brasil, e agora de maneira mais enfática nos países ibéricos e América Latina.
Uma rápida passagem pela Escola Brasileira de Lenormand: baralho cigano
O Lenormand brasileiro, mais conhecido como baralho cigano, nasce a partir de um processo de releitura do Lenormand clássico, mas não desestrutura o sistema original. Ancorado fundamentalmente no princípio do sincretismo, sua concepção nos mostra uma forma bastante peculiar de entender o mundo oracular e a cartomancia.
As cartas que chegam ao Brasil pelas mãos das cartomantes francesas, a partir da segunda metade do século XIX, passam com o tempo a ser utilizadas de maneira intensa pela população local já bastante versada nos temas de práticas espirituais, religiosas e místicas. Tanto os povos originários (indígenas) quanto os africanos e as africanas que desembarcaram no Brasil ao longo de mais de três séculos oriundos de diferentes regiões do continente africano possuíam suas práticas religiosas, seus deuses e deusas, outras formas de oracular.
Os emblemas possuem fácil conexão interpretativa e são um elemento bastante atraente. Ainda que o repertório simbólico daquelas imagens oriundas da Europa do século XVI não encontrasse eco perfeito nas terras tropicais, houve sim uma inclinação a conhecer e utilizar o oráculo.
Com o passar do tempo, e considerando que a cartomancia popular reflete o sistema de valores de um povo em determinado contexto geográfico, histórico e cultural, algumas cartas passaram por um processo de releitura a partir da lógica do sincretismo e mudanças iconográficas, simbólicas e interpretativas ganharam força e deram início ao que se conhece hoje em dia como Escola brasileira de Lenormand. O baralho também passou a ser chamado de Baralho cigano em associação à egrégora espiritual deste povo dentro do contexto epistemológico da Umbanda.
A estrutura oracular permaneceu intacta, as 36 cartas continuam existindo e as técnicas descritas nos capítulos anteriores continuam dando o suporte narrativo para o sistema, somente o repertório de fundo associado aos emblemas de algumas cartas sofreu alterações na tentativa de ajustá-las à realidade local.
Mesa real
Com o baralho cigano da Trybo Cósmica
Informações sobre a autora
Renata Taño Berreta é espanhola e brasileira e, atualmente, mora em Portugal. Dedica-se ao longo dos últimos quase vinte anos a estudar e pesquisar temas como: mediunidade, religiões e tradições afro-brasileiras e cartomancia. É linguista de primeira formação, psicoterapeuta e educadora. Atualmente desenvolve um longo estudo histórico sobre o Lenormand brasileiro e acaba de publicar um livro intitulado: “Baralho cigano: introdução ao Lenormand brasileiro”. Participa de congressos, ministra curso e realiza atendimentos de psicoterapia, cartomancia e outras práticas integrativas.
Para mais informações: www.renatatano.com
Contatos
@renata_tano/ @renata_tano_cartomancia
+34 645 99 28 14
Livro
“Baralho cigano: introdução ao Lenormand brasileiro”
Disponível em português e espanhol nas versões digital e impressa.
Bibliografia
Biblioteca virtual da universidade de Salamanca (janeiro de 2021) https://bibliotecahistoricausal.wordpress.com/2020/04/03/la-emblematica-o-libros-de-emblemas/
http://forum.tarothistory.com/viewtopic.php?f=11&t=844 (janeiro de 2021)
BASTOS, Katja. O Tarot Cigano da Trybo Cósmica. Rio de janeiro, 2018.
O Tarot Cigano da Trybo Cósmica – Encantaria Cigana do povo do Oriente. Rio de Janeiro, 2020.
DEL PRIORE, Mary. Do outro lado. A história do sobrenatural e do espiritismo. São Paulo. Planeta do Brasil, 2014. O futuro e o passado nas cartas. Entre críticas e reservas, a cartomancia conquista o público francês e brasileiro. (Dezembro de 2020). https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/coluna-mary-del-priore-o-futuro-e-o-passado-nas-cartas. phtml
LEPLETIER, Alexsander. O Jogo da Esperança, um jo-go que virou oráculo. (Enero de 2017).
RIEMMA, Constantino K. O baralho cigano e seu imaginário. (Fevereiro de 2018) http://www.clubedotaro.com.br/site/h23_20_cigano.asp.
SANTOS, Emanuel J. Fé, Esperança e Caridade no Pe-tit Lenormand. (Fevereiro de 2018) http://www.clubedotaro.com.br/site/n46_2Emanuel.asp.
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